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Venda de remédios sem eficácia comprovada contra a Covid dispara

MATÉRIA REVISADA ÀS 15H32 DE 11 DE FEVEREIRO DE 2021

Estudos apontam que antimalárico, vermífugo e antiparasitário não ajudam a evitar mortes e quadros graves da doença. Procura na farmácia subiu acompanhando mudanças nas regras da Anvisa, que chegou a incluir e depois retirou os medicamentos da lista de controle especial.


No balcão da farmácia, o cliente pede um vermífugo para combater a Covid-19. Apesar do alerta do farmacêutico de que não há eficácia comprovada, a compra é concluída. Com ou sem o aviso na drogaria, a cena se repetiu à exaustão em 2020, fazendo com que medicamentos como a hidroxicloroquina (antimalárico), a ivermectina (vermífugo) e a nitazoxanida (antiparasitário) tivessem altas expressivas nas vendas em 2020.

Apenas no caso da hidroxicloroquina, o total mais que dobrou, passando de 963 mil em 2019 para 2 milhões de unidades em 2020, conforme levantamento obtido com exclusividade pelo G1 junto ao Conselho Federal de Farmácia (CFF).

Na base desta discussão está o uso dos medicamentos off-label (fora da indicação já prevista em bula): o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que não endossa o uso, mas defende a autonomia dos médicos (veja mais abaixo).

Aos três remédios já citados acima se juntam outros (veja lista abaixo) que chegaram a ser agrupados no chamado kit Covid, voltado ao suposto “tratamento precoce” da doença. As drogas foram prescritas por médicos brasileiros apesar de estudos científicos no Brasil e no mundo não apontarem benefícios e alertarem para riscos associados ao uso.

Além de especialistas, de algumas entidades médicas e de pesquisas publicadas em revistas científicas, até mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou a ineficácia da estratégia off-label que impactou o varejo farmacêutico. Entretanto, na avaliação das empresas, a responsabilidade pelo aumento das vendas fica com os profissionais que têm poder de assinar a receita.

Procurado pelo G1, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) disse que: “não se pronuncia publicamente em situações que envolvem produtos e empresas determinados, como é o caso desta pauta”. A entidade indicou que o G1 procurasse as empresas para um posicionamento.

O Sindusfarma complementou: “Todos os medicamentos aprovados e registrados pela Anvisa para uso no país, inclusive os produtos citados na reportagem, têm eficácia comprovada para as indicações terapêuticas de suas bulas, devendo ser consumidos de acordo com as prescrições e orientações de médicos, farmacêuticos e demais profissionais de saúde habilitados, ou seja, inclusive off-label, desde que sigam novas indicações terapêuticas baseadas na prática médica e na ciência” (ao final da reportagem, leia nota do Sindusfarma).

A FQM, uma das 10 que comercializam o vermífugo nitazoxanida, enviou nota ao G1 na qual diz que o medicamento por ela batizado de Annita, assim como os outros, não “possui a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da Covid-19 no Brasil”, mas que apoia quatro estudos clínicos da substância como alternativa contra o Sars-Cov-2 e citou que estudos in vitro (em laboratório) ainda não publicados apontam “poder inibidor” da molécula contra o vírus.

Apesar disso, a FQM lembra que não há fármaco aprovado contra a Covid e apontou que o uso é de responsabilidade dos profissionais.

“(…) Dessa forma, torna-se exclusivamente uma decisão médica o uso como tentativa de terapêutica para a doença, onde o profissional deverá assumir a responsabilidade da prescrição, com o consentimento do paciente.” – FQM, uma das fabricantes da nitazoxanida.

A EMS, uma das empresas que que produzem a hidroxicloroquina/cloroquina no país, destacou em nota ao G1 que tem a “missão de cuidar de pessoas sempre com responsabilidade e com o apoio da ciência”, e citou que a responsabilidade é dos médicos.

“Os médicos são os únicos profissionais habilitados a prescrever o uso adequado do medicamento, seguindo os protocolos de Medicina” – EMS, uma das fabricantes da hidroxicloroquina

Pressão na farmácia, off-label

Entidades e especialistas ouvidos pelo G1 apontam que o aumento no faturamento das empresas com a alta nas vendas é reflexo de uma pressão nas farmácias que foi incentivada com declarações e medidas por representantes e órgãos do governo federal, somados a uma falta de posicionamento crítico do próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) em relação ao uso dos medicamentos off-label (fora da indicação já prevista em bula).

“A verdade é que os medicamentos estão sendo prescritos [pelos médicos]. Com as falas do presidente (Jair Bolsonaro) e a defesa de outros membros do governo, isso criou uma pressão muito grande em cima dos profissionais de saúde. Os pacientes muitas vezes ouvem o que diz o presidente e entendem que pode haver uma saída”, disse Marcos Machado, do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CFF-SP).

Presidente Jair Bolsonaro participa de evento no Planalto sobre uso da nitazoxanida contra a Covid — Foto: Isac Nóbrega/PR
Presidente Jair Bolsonaro participa de evento no Planalto sobre uso da nitazoxanida contra a Covid — Foto: Isac Nóbrega/PR

Quando os números das vendas são destrinchados mês a mês (veja no gráfico mais abaixo), é possível ver uma flutuação diretamente relacionada com a publicação das resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que abrandaram ou restringiram o nível de exigência das receitas – inclusão ou exclusão dos medicamentos na lista de controle especial.

“O aumento ou a diminuição das vendas varia muito em função da rigidez, ou da flexibilização, da norma sanitária que é estabelecida pela Anvisa. Observou-se isso com a hidroxicloroquina, que em março passou a ser controle especial, e isso dificultou o acesso às compras. A gente vê claramente nos dados que as vendas diminuíram. Depois, quando a Anvisa muda de novo, passa a exigir uma receita simples, os números são impressionantemente aumentados”, explica o professor Tarcísio Palhano, assessor da presidência do CFF e presidente da Sociedade Brasileira de Farmácia Clínica.

Venda de remédios sem eficácia contra a Covid-19 em farmácias do Brasil — Foto: Elcio Horiuchi/Arte G1

Venda de remédios sem eficácia contra a Covid-19 em farmácias do Brasil — Foto: Elcio Horiuchi/Arte G1

Sem medidas das empresas

Além de apoiar novas pesquisas, como citou a FQM, as empresas fabricantes dos medicamentos não tomaram outras medidas para alertar sobre os riscos do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19. O Sindusfarma alegou que a resolução RDC 96/2008, da Anvisa, veta propagandas do setor voltadas para o público em geral.

Empresas e medicamentos off-label

SubstânciaNº de empresas
Hidroxicloroquina (antimalárico)4
Ivermectina (antiparasitário)8
Nitaxozanida (antiparasitário)10
Ácido ascórbico (vitamina C)153
Colecalciferol (vitamina D)150

Fonte: Sindusfarma

O especialista Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris, explica que “uso off-label é responsabilidade de quem prescreve”. Sobre o papel das farmacêuticas, que acabam lucrando com a venda, ele explica que a maior responsabilidade é dos órgãos públicos que “fizeram propaganda” durante o ano.

Procurado pelo G1, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que “não apoia o uso de medicamentos off-label”, e também defende a autonomia dos profissionais de saúde.

“No contexto da pandemia, diante da inexistência de opções terapêuticas com validação científica comprovada para prevenir ou tratar a Covid-19, o médico tem autonomia para fazer uso dessas substâncias no atendimento dos pacientes, desde que este paciente esteja de acordo e esteja esclarecido – de modo livre e esclarecido – sobre a falta de evidências de sua eficácia e/ou segurança”, afirmou o CFM em nota.

Dourado faz coro a outros especialistas em saúde que afirmam que o CFM usou o “escudo da autonomia médica” para não se posicionar. Apesar disso, ele aponta que o governo federal tem a maior responsabilidade. “O mais grave é o Ministério da Saúde. Eles ficaram meses falando, defendendo. Quem tem que agir é o poder público: a Anvisa, o Ministério e o CFM”, afirma o especialista.

Para Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo e pós-doutora em epidemiologia pela Universidade Johns Hopkins, ainda não temos a exata dimensão do prejuízo do uso desses remédios na saúde das pessoas.

“Quem teve um problema cardiovascular devido ao uso indiscriminado? No caso da hidroxicloroquina, a gente ainda nem sabe, no meio de tantas mortes neste ano, quem pode ter sido prejudicado” – Ethel Maciel, pós-doutora em epidemiologia

Orientação nas farmácias

O Conselho Federal de Farmácia afirma que o farmacêutico tem autonomia durante a venda e deve alertar sobre os riscos do uso de medicamentos off-label, mesmo quando o paciente tem uma receita médica em mãos.

“Independentemente da pandemia, o farmacêutico tem a obrigação de observar sempre antes de dispensar (liberar) qualquer medicamento quais são os aspectos técnicos e legais. Ou seja, ele tem autonomia para decidir se libera ou não. Às vezes, ele pode detectar algum problema que inviabiliza a dispensação e, agora, com a questão da Covid-19, essa autonomia foi até enfatizada”, explica Tarcísio Palhano, assessor da presidência do CFF e presidente da Sociedade Brasileira de Farmácia Clínica.

Caso o farmacêutico faça o esclarecimento dos riscos ao cliente e, mesmo assim, ocorrer uma insistência na compra, o CFF recomenda o preenchimento de um termo de ciência e responsabilidade para repassar todas as informações dadas ao paciente. O profissional também pode exigir um outro documento, uma autorização do cliente dizendo que compreendeu todas as informações do momento da compra e que, mesmo assim, decidiu pelo uso da medicação.

Nota do Sindusfarma

Veja abaixo posicionamento da entidade:

“O tema é amplo e complexo e envolve diversas instâncias: médicos, farmacêuticos, pesquisadores e entidades da área da saúde, Anvisa, Ministério da Saúde etc., além da própria sociedade brasileira.

As considerações do Sindusfarma a respeito da questão são as seguintes:

1 – Todos os medicamentos citados estão devidamente registrados e autorizados para venda no mercado brasileiro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED);

2 – A fiscalização do mercado farmacêutico é de responsabilidade da Anvisa, no âmbito sanitário e de divulgação, e da CMED, no âmbito comercial e econômico, inclusive preços, que são controlados;

3 – A normas que regulam a venda e a prescrição de medicamentos no Brasil foram mantidas e até reforçadas pela Anvisa durante a pandemia, para garantir o consumo segundo as indicações terapêuticas, justamente com o objetivo de inibir o eventual consumo irracional de medicamentos;

4 – A legislação em vigor proíbe as indústrias farmacêuticas de realizar campanhas de divulgação de qualquer natureza (anúncios publicitários, marketing etc.). A realização de campanhas públicas é uma atribuição da Anvisa, do Ministério da Saúde e das autoridades da área da saúde (a exceção à regra são os medicamentos isentos de prescrição – MIPs -, que podem ser objeto de publicidade, mas de acordo com regras estritas sobre seu conteúdo e sua veiculação, determinadas pela Anvisa);

5 – As embalagens e as bulas de qualquer medicamento aprovado pela Anvisa indicam claramente as condições de uso do produto, sempre e necessariamente baseadas em uma série de estudos clínicos e anos de pesquisa (procedimento este que o público leigo está podendo acompanhar em detalhes agora nos vários dossiês de aprovação de vacinas contra a Covid-19).

6 – A propósito, o Sindusfarma sempre defendeu que os medicamentos tarjados (aqueles que na embalagem tem uma faixa vermelha ou preta) somente sejam dispensados aos consumidores mediante a apresentação de receita de profissional de saúde, devidamente habilitado.

Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos – Sindusfarma”

Nota da empresa FQM

Veja abaixo a íntegra da nota da FQM:

Até o momento, nenhuma substância – como a nitazoxanida, azitromicina, ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina, remdesevir, favipiravir – possui a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da Covid-19 no Brasil. Esses medicamentos não têm a indicação formal de combate ao SARS-Cov-2 na bula. Dessa forma, torna-se exclusivamente uma decisão médica o uso como tentativa de terapêutica para a doença, onde o profissional deverá assumir a responsabilidade da prescrição, com o consentimento do paciente.

A substância nitazoxanida tem sido estudada em diversos países, como Brasil, Egito, Estados Unidos e México, para o tratamento da Covid-19. A FQM Farmoquímica, empresa detentora do medicamento de referência Annita, no Brasil, tem apoiado estudos brasileiros que, em uma primeira fase, apresentaram dados muito positivos em relação a sua ação in vitro contra o SARS-Cov-2 – em amostras do vírus circulante no Brasil. Baseado nesse resultado, um ensaio clínico fase II foi concluído recentemente e apresentou resultados muito promissores quanto à sua eficácia e segurança no tratamento de pacientes com a doença.

A pesquisa seguiu todas as etapas de aprovação e condução estabelecidas pela Conep e Anvisa, e foi apresentada às autoridades regulatórias e comitê científico para avaliação e continuidade da fase III. Os pesquisadores já submeteram os resultados para publicação em uma revista científica internacional e, após a publicação, os resultados poderão ser divulgados à comunidade médica, científica e população geral.

FQM tem concentrado esforços para que haja a aprovação da terceira fase do estudo e, assim, sua execução e conclusão. A farmacêutica vê com otimismo a conduta e continuidade em busca dos resultados das pesquisas, pois, acredita que ainda é cedo para desconsiderar a nitazoxanida como uma alternativa eficaz para o tratamento da Covid-19. Ressalta-se que o estudo em questão não tem qualquer relação com ensaios clínicos conduzidos e publicados anteriormente por outros órgãos ou instituições.

FONTE: G1

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